Antes do Crepúsculo: catacumba molhada
- João Rosa de Castro
- 1 de jul.
- 5 min de leitura

Os filhos de Núbia diziam ser possível manter suas fotografias na nuvem. Mas ela era da época do carneirinho que ia de porta em porta para fotografar com as crianças.
Estava vendo as últimas fotos reveladas em papel que tinha conseguido com amigos e parentes, além das dela própria, e deparou com uma foto de Elpídio, seu querido irmão, que agora estava perto de seu coração. Tanto tempo sem se falarem; sempre se encontrando no tumulto da velha casa de seus pais antes de ele partir.
A foto era a de um aniversário de Morgana, sua filha — três aninhos. E olha. Morgana hoje é uma arquiteta em formação. Está prestes a casar.
Mas não foi Morgana que chamou a atenção na fotografia, mas o encontro. Cada encontro Núbia gerava com suas festas! Não era de esperar os três juntos ali dividindo os mesmos limites dimensionais da imagem: Elpídio, Rosália e Nida.
Nida era sublime porque (e “embora”) mulata. Núbia teria tido sobrinhos mais bonitos se fossem filhos de Nida do que se fossem de Rosália. Mas a confusão daquelas duas mulheres foi o que fez Núbia parar e rememorar os fatos envolvendo os três. E lembrava assim:
Elpídio era sistemático desde menino. Aluno nota dez. Começou a trabalhar com o pai. Mas logo se interessou pelos motores. O pai o queria mecânico. Mas ele queria dirigir.
E andava pelo subúrbio dirigindo o carro do cunhado já aos quinze anos — queria dirigir. Só pensava em carros: pequenos, grandes, caminhonetes, caminhões, ônibus, etc.
Quando viu Nida, ficou ensandecido de paixão. E só então lembrou que seu plano de menino era escolher sua namorada quando tivesse doze ou treze anos de idade. Calculou que, se contava dezenove anos quando a conheceu, estava pelo menos seis anos atrasado na empreitada. E se atrasara por conta daquela estória de carros! Os carros que desenhava, os carros que iam em suas redações descritos e narrados, os carros que dirigia e admirava.
Escolheria a mulher de sua vida toda aos doze ou treze porque aprendera assim na escola. E agora via Nida e ficava confuso — sentindo-se velho. Não tivera nenhuma namorada a sério ainda. Eis que ela parecia retribuir a paixão.
Ficou mais fácil convencer-se de que teria o começo que lhe estivesse previsto naturalmente. O destino era igual para todos: do pó viéramos, ao pó tornaríamos! Começaram a namorar!
Por motivos de contendas nas duas famílias envolvendo as diferentes raças (ou cores da pele) do casal, já que Elpídio era loiro dos olhos azuis e Nida era mulata, o namoro que se encaminhava para um noivado ruiu.
Elpídio resolveu investir em Rosália, cujos traços talvez condissessem com os dele e impediriam contendas como as recém-vividas. Mais porque Rosália se dizia apaixonada havia muito do que porque tivesse algum sentimento semelhante ao que nutri(r)a por Nida.
Assim foram vivendo um namoro oco como madeira ruída por cupim. Só havia ali aparências e banalidades, brigas infantis, tudo o que um namoro vazio pudesse oferecer. Mesmo assim, passado algum tempo, eles estavam noivos.
Mas Nida estava sempre nas festas da casa. Estaria também sempre na mente e no coração de Elpídio? Isto ele não confessou à irmã, que nas contendas, estivera a favor dela.
Núbia repetia sempre, como em discurso de projeto de socióloga, “que o Brasil era fruto da miscigenação: só a miscigenação identificava o país como nação”. Debalde: os opositores do relacionamento eram mais incisivos e numerosos. E as ironias, as indiretas e o mal-estar recaíam sobre Nida de maneira insustentável. Mesmo assim, ela continuou indo às festas da casa de Núbia depois do rompimento.
Elpídio não gostava de polêmicas. Era consciencioso. Um homem razoavelmente coerente. Trabalhara dirigindo ônibus de viagens longas por muitos anos. E estava preocupado com o desenvolvimento pessoal, profissional e social das pessoas.
Decidiu-se a dirigir caminhão de coleta de lixo, descarregando lixo nos lixões; e depois que começaram a produzir os aterros, ele continuou trabalhando como motorista. Sempre atrás do volante.
Divertia-se com os coletores; ria-se muito com as viagens de caminhão e os colegas. Passou a ganhar menos em salário nos caminhões, mas se divertia tanto com as aventuras das vizinhanças, com as piadas dos coletores, com os colegas do aterro, que decidiu investir nisso por muito tempo.
“E se for malbaratar a nossa profissão, você vai cair do cavalo.”. Dizia. “Um motorista ou um coletor de lixo são respeitados como ninguém por gente de maior inteligência global. Só os Zé Povinho é que vão dizer: Que isso! Trabalhar de lixeiro! Não é pra mim!”. Dizia Elpídio aos colegas rindo.
Ao que o colega repontava: “São os cabecinha! É trabalho como qualquer outro! Esses que mais condenam nosso trabalho são os mais folgados, vagabundos e ‘parasitos’”! E se divertiam com conversas desse tipo pelas viagens!
***
Contudo, certa noite, ouviram-se gritos de Rosália, vindos de sua casa, que ficava ao lado da casa de Núbia: “O Elpídio há que casar comigo…! Aquela preta ordinária não adianta insistir, não…! Eu é que vou mandar fazer um ebó para ela arrastar pra cima e ainda vou mijar na catacumba dela…!”.
Núbia ouvira o escândalo da futura cunhada e ficara aterrada com o nível de pensamento que adentrava a família de seus pais. Teve ódio. Teve pudor de si mesma como mulher. Rosália era uma desclassificada. E Nida estava sendo vítima de uma grande injustiça.
Chamou o irmão, depois de pensar muito bem sobre o que iria dizer, e contou-lhe o ocorrido. Se Elpídio já ficou perplexo com a imagem de Nida morta; imagine-se sendo ultrajada! De certo que ainda a amava!
Elpídio abandonou Rosália, e, como já contava vinte e sete anos, passava da idade de casamento. Ficou solteiro e se dedicando ao aterro. Com os colegas!
Rosália foi definhando. Cada vez mais sua depressão aumentava. E nada lhe consolava. E nenhuma presença lhe apetecia. Queria só andar a falar de Elpídio; quando não, com Elpídio. Só pensava nele!
Até que, numa tarde de verão, em que Elpídio ia visitar a irmã, seus colegas, que vinham da casa de Rosália, intimaram-no a ir ver a ex-noiva que estava muito doente e talvez sarasse se o visse.
Depois de muita insistência dos amigos, Elpídio foi. Quando chegou ao quarto onde estava uma Rosália macérrima, muito depauperada, pálida e envelhecida, disse: “Oi, Rosália! Tudo bem?”, ela se voltou para ver se o reconhecia. Quando viu que era ele mesmo, apenas disse: “Elpídio… Elpídio…” E morreu.
Sua mãe fez o sepultamento, e não muita gente foi se despedir. Não sem antes exigir que Elpídio pagasse pelas despesas no cemitério. O que ele fez de bom grado, desde que ela lhe devolvesse o troco.
Elpídio continuou levando a vida pelas ruas, avenidas e estradas. Até que não era tão ruim assim a sua vida de solteiro. Mas, depois de alguns anos, antes de chegar aos quarenta, Elpídio morreu realizado e teve um grande cortejo em seu funeral.
Núbia examinava a fotografia. Nunca tornaria a ter acesso àquela imagem de tantos anos, que lhe trazia agora tantas lembranças, agradáveis e desagradáveis, se tivesse guardado na nuvem. Tantas falhas tecnológicas havia naqueles sistemas que todos usavam, e ninguém entendia que, na nuvem, aquela festa de aniversário e aquela imagem fatídica seriam puro silêncio.
In: CASTRO, João Rosa de. Antes do Crepúsculo. 2ª Edição. São Paulo: Clube de Autores, 2025. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/antes-do-crepusculo>
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