Oficina de Ficção: histórias contadas
- João Rosa de Castro
- há 3 dias
- 8 min de leitura

…Hoje, logo cedo, às cinco e meia da manhã o telefone tocou insistente e me despertou. Era Núbia preocupada com Igor. Eu falei a ela sobre ele, que estivera aqui e fora para a casa de Marlon, ontem às dez da noite. Decidiu dormir por lá mesmo, levou o bilhete dela e não telefonou para dar sinal de vida. Ela estava preocupada, e com razão. Depois que ligou para Zoélia e soube que ele tinha ido para a casa de Marlon, ficou mais tranquila. Consegui contar a ela o que sabia sobre o filho, não sem gaguejar ou sem ter uns brancos – tinha acabado de acordar. Mas ela ia entrecortando a conversa com perguntas.
Depois, às sete e meia, enquanto traduzia, liguei a TV e fiquei vendo os repórteres apresentando a situação caótica em que os ataques deixaram a cidade. Vi um ônibus parado, no Jardim Amélia, atrapalhando o trânsito, os passageiros descendo. O motorista deve ter percebido alguma ameaça; a repórter, num helicóptero não sabia dizer o que estava acontecendo. Mostraram também a posição de alguns presidenciáveis, como Cristovam Buarque e Heloísa Helena. Não me recordo com detalhes o que eles disseram sobre o que pretendem fazer com a segurança pública no país, pois devo ter metido todo o conteúdo de suas falas assanhadas no velho saco de promessas de políticos inócuos; e parece que do jeito que andam as coisas, no Brasil, não existe outro adjetivo para caracterizar nossos políticos, nem mesmo os bem-intencionados.
Lá pelas nove horas a campainha tocou; era o Igor querendo saber sobre a preocupação da mãe. Parece que lhe caíra a ficha de que havia alguém que o esperara à noite. Relatei, com um ar enfastiado, por conta da leseira dele, como eu tinha sido despertado inutilmente às cinco e meia da manhã, conversado com a Núbia e a feito saber que ele estava por aqui. Ele falava sobre os ataques. Eu já estava a par.
Roberta acordou e veio para a sala assistir tevê, para incitar ainda mais a minha concentração na tradução do segundo capítulo, que corria solta dentro da minha cabeça. Depois Chelidon e a Grande Mãe também foram despertando e se movimentando pela casa. Contei à Grande Mãe, já com desânimo, a mesma história do Igor. E imagino que ele e Marlon fazem essas coisas sem pé nem cabeça para que fiquemos gastando toda a nossa energia oral com suas ações impensadas e imprevisíveis, como se elas competissem por tamanha atenção. Eu ia contando e a Grande Mãe ia fechando a cara com cada detalhe da situação. Não deixei de expressar como o fato já me havia preocupado. Mesmo assim, ela pegou o telefone e falou com Núbia, que fora trabalhar de metrô, apesar dos ataques, e já estava no trabalho. Eu disse à Grande Mãe que não poderia ir ao Incor buscar seus medicamentos, como fazia todos os meses. Ela, depois de ruminar sobre o assunto, disse que Levi poderia me levar de carro até o metrô. Eu disse não querer arriscar, quer em consequência da situação quer por não saber como voltaria do metrô à tarde. Disse a ela que ia tomar banho e que depois ia telefonar para o Incor e saber se eles poderiam entregar os medicamentos no dia seguinte. Quando liguei, disseram que não seria possível. Era preciso ir hoje mesmo ou amanhã e remarcar para outro dia a entrega, pois eles não poderiam transferir “os dois mil pacientes para o dia seguinte”. Era preciso reprogramar. Quando disse isso a Chiquinha, ela pensou e pensou e decidiu que ia pedir a Matheus que fosse buscar o medicamento de carro. Ele se propôs vir buscar a prescrição e ir à tarde. Que bom, menos ruim. Caso contrário, além de correr o risco de estar num ônibus que poderia ser atacado, eu teria de suportar por duas vezes o ambiente hostil da farmácia tumultuada do Incor, além de atrasar a entrega dos medicamentos.
Agora, livre desse compromisso que iria cumprir depois da psicanálise, liguei para a Dra. Helena, para reagendar a consulta. Depois que justifiquei a minha falta de hoje com os ataques dos pulhas, ela marcou nosso próximo encontro para amanhã ao meio-dia e meia. É sempre breve ao telefone. A Dra. Helena é tradicionalista. Gosta mesmo é de olhar nos olhos. Ficou agendado nosso encontro. Agora eu estava livre de qualquer compromisso.
Livre de qualquer compromisso, decidi telefonar para Guilherme para saber se ele teria coragem de ir para o Guarulhos, como faz toda quinta-feira, apesar da situação da cidade. Ele estava no banho e quando atendeu o telefone eu já tinha desistido, achando que ele tinha mesmo ido, feito louco. Sendo assim, podia me dar ao luxo de dormir. Quem sabe um sonho bom me desse algo de interessante para pensar. Antes de pegar no sono, o telefone tocou. Era Guilherme, dizendo que eu era “um chato”. Tinha feito com que ele saísse do banho, todo molhado, para atender o telefone insistente e, quando chegou lá, nada. Dizia que estava já pronto. Que ia para Guarulhos mesmo assim. Eu disse que ele tinha se alucinado. Justo ele que assiste tanta televisão não tinha visto que de dezoito linhas de ônibus, apenas duas estavam funcionando? Será que ele não entendia o que isso significava para nós que moramos longe do metrô? Mas não. Estava achando que em Guarulhos as coisas estavam melhores. Mas eu lembrei que até Guarulhos ele teria de atravessar um bom pedaço de São Paulo, e que, além disso, o ataque dos pulhas era geral. Aconselhei-o veementemente para que não fosse. E o dissuadi de ir.
Cúmulo da vaidade, imagino que Guilherme tinha passado creme até dentro do ouvido. Devia estar “arrasando Paris”. Não querendo desperdiçar beleza, me chamou para ir com ele à locadora pegar uns filmes. Expliquei-lhe que não estava disposto, já tinha pegado a cauda de um sonho e não queria perdê-lo de vista. Sugeri que fôssemos lá à tarde ou à noitinha. Ele concordou, fulo porque teria de se desaprontar todo para ficar em casa vendo televisão. Desligamos. Dormi.
Não me lembro do sonho que tive. Conquanto seja comum sonhar bem e me lembrar dos sonhos que tenho de dia. Primeiro acordei com Matheus entrando no meu quarto. Voltei a dormir. Depois acordei novamente com o telefone tocando. As meninas corriam pela casa lutando contra a impaciência de quem estivesse do outro lado da linha. Eu dissera a elas que não atendessem o telefone, mas que entregassem o aparelho para mim ou para a Grande Mãe, tão logo tocasse, porque alguns telefonadores não tinham paciência de tocar muitas vezes. E assim fizeram, me despertando na tarde. Imaginei que fosse para mim e fiquei à espreita, da cama, do quarto, atento. E era. E era a Annie, da Brightness. Finalmente a “novela” do processo seletivo terminara. Ela propunha que eu fosse a Alphaville no dia seguinte às nove da manhã – Francisco tinha uma proposta final a me fazer, e, em aceitando, eu poderia ser contratado... Nem pestanejei. Disse decidido que iria. Que estaria lá às nove do dia seguinte.
Levantei da cama eufórico. Primeiro deveria falar sobre o telefonema à Grande Mãe, depois a Guilherme e, por fim, a Núbia. Nessa ordem. E assim fiz. Chiquinha, mesmo entrecortando minha fala entusiasmada com lances de impossibilidades e desesperanças, pareceu-me alegre. Depois Guilherme. Disse a ele que chegara à reta final do árduo processo seletivo da Brightness. Ele me parabenizou afoito e ficou esperando um “obrigado”. Como eu ficasse em silêncio, ele ralhou comigo que eu nem agradecia. Disse que também ficava feliz com a aprovação. Parecia que havia um brilho ao seu redor. Maria Deodora, sua irmã e vizinha, também estava tendo algumas conquistas como essa. Sua filha, Mariana, já tinha começado a trabalhar no hotel, depois de algum tempo que procurava emprego; Rogério, o marido que havia mais de dez anos que não trabalhava na formalidade, desde o começo do namoro deles, também tinha finalmente conseguido um emprego digno. Guilherme também me pareceu satisfeito com a notícia.
Contei a ele ainda que depois da conversa que tivera com a responsável por direitos autorais da Rocco, o filho de Clarice Lispector já estava por me contatar. Contei tudo que tinha feito para conseguir aquela tradução. Finalmente uma ação minha que faz jus ao aforismo nietzschiano sobre a glória. Diz ele que quando se luta pela glória, é preciso “fazer-se superior e desejar que isso apareça também em público”. Se faltar o primeiro estamos diante da vaidade; se faltar o segundo, o caso é mesmo de orgulho. Como eu já tenho muito trabalho literário acumulado, sem que o público conheça, senti-me, ao ler isso, um orgulhoso. Mas o Guilherme lembrou que não pode ser esse o meu caso porque eu tenho, por outro lado, muita poesia publicada pela CBJE e por mais duas editoras. Disse que muita gente que desacredita de mim, e de nós, porque não raro nos confundimos quando falamos de nós mesmos no nosso contexto, muita gente vai ter que “deixar as barbas de molho” em relação a nós. Segundo Guilherme, há muito que nossos conhecidos vêm nos subestimando, porque eu sou um “desempregado-crônico” e ele um aposentado dependente do estado. Mas precisam ver que não é nada disso. Nem tudo é como parece. Somos muito úteis socialmente, e isso está, não só aparecendo em público, mas também ficando patente. Por fim, desistiu de ir à locadora, mas desligamos com a nota positiva de que nossa estrela está brilhando; que continuemos assim, pois.
Fui comprar cigarros e pães. Meu passeio diário por aqui. Na esquina de sempre, do mercado, encontrei Abel. Ele estava chapado. Me abraçou em plena avenida principal e me deu um beijo no rosto, demonstrando o prazer em me rever depois de quase uma semana. Conforme eu tinha combinado com Guilherme, disse a ele que fosse ao bar de Renata, pois Guilherme tinha um assunto chato a tratar com ele, na sexta-feira, à noite. Atravessamos a rua e fomos juntos à padaria. Pedi os pães, pedi os cigarros. Paguei. Enquanto isso, Abel, que conhece todo mundo, já conversava com um jovem que sempre vejo na padaria e quase cumprimento, mas algo nos afasta. Fiquei meio desconsertado esperando que ambos concluíssem o assunto. Logo concluíram e, saídos da padaria, fomos andando na direção da casa de Guilherme. Perguntei a ele como estava o trabalho novo e ele disse que “tudo bem”. Queria ir encontrar Guilherme imediatamente, mas eu disse que não, era melhor falarem na sexta-feira. Só adiantei o assunto, dizendo que era sobre um comentário que um familiar dele fez e que o preocupou um pouco. Mas nada contra nós. Era território principalmente dele. Abel mentiu que fazia aniversário em dezembro, e estava ali, em pleno fim de julho dizendo que faria aniversário no dia seguinte. Despedimo-nos.
Por fim, Núbia telefonou querendo saber o que tanto eu queria falar de bom. Igor tinha dado a ela o meu recado sobre a Brightness, e ela estava curiosa. Contei a ela sobre o encontro que teria, e ela vibrou entusiasmada. Lembrou que o último conselho que me dera quando eu estava para baixo era o de que depois de uma plantação árdua e fecunda, por mais que demorasse, sempre colheríamos os frutos maduros, ainda que tardios. Depois fiquei impressionado que, apesar de sua excessiva brasilidade, falamos em inglês por mais de uma hora e ela está falando cada vez melhor com o curso novo. Contei a ela sobre o privilégio do contato com o filho de Clarice Lispector; falamos sobre suas lições de inglês, sobre o aforismo que me motivou a esta oficina; falamos sobre a possibilidade de nos reunirmos, eu, ela e o Brendon, o inglês, para falarmos da edição em território estrangeiro, já que ele é perito na divulgação da cultura brasileira. Enfim falamos de diversos assuntos, impressionante, tudo em inglês. Eu sempre deduzindo das frases inadequadas o que ela queria dizer e formando a adequada para ela repetir. Deu certo e foi bom. Agora é terminar o terceiro capítulo, ir dormir e acordar amanhã, às cinco horas, para sair daqui às seis em ponto…
In: CASTRO, João Rosa de. Oficina de Ficção. 2 ed. São Paulo: Autopublicação, 2019. Disponível em <www.pedradetoque.com>.
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