top of page

Oficina de ficção: tipos e caracteres

  • Foto do escritor: João Rosa de Castro
    João Rosa de Castro
  • 24 de jun.
  • 4 min de leitura

Atualizado: há 4 dias


Hoje eu visitei a terra de Hades. Um amigo sério me disse que eles haviam enviado toda sorte de homens estranhos para uma ilha. Esta ilha passou a se chamar a Ilha dos Distintos de Hades. Fui movido pela vontade de encontrar alguns amigos que eu só conhecia de ler e que haviam morrido há anos.


Logo que atravessei o portal enfeitado com uma arcada de flores bizarras, encontrei Nietzsche. Ele disse que estava me esperando.


— Surpreendido, eu perguntei: “Como você sabia que eu vinha para encontrar você também?”


— Ingênuo, você, Bion. Como eu poderia deixar de saber da sua vinda se a cada dia ficamos mais ansiosos por novas do mundo?! Sempre que alguém nos visita, eu sou um dos primeiros a saber, — respondeu Nietzsche.


Ele coçou a testa, com um ar duvidoso, procurando um lugar onde pudéssemos sentar. Fomos para um banco rodeado pela fresca sombra de uma árvore suntuosa, rica em folhas e flores.


— É um privilégio poder ouvir sua voz. É diferente da voz que imagino quando leio, — eu disse.


— A minha voz não é nada comparada àquela que você vai ouvir daqui a pouco. Ela já está a caminho. Eu sinto, — respondeu ele.


— Ela quem?


— Você não sabe que minha companheira aqui na ilha de Hades sempre foi a Clarice, desde que ela abandonou o mundo? Aqui é o único lugar onde desejamos com boa consciência a morte das pessoas amadas. Somente após a morte podemos compartilhar com elas a vida, ou a morte, sei lá. E olha, ela ali ao nosso encontro.


— A Clarice Lispector?! Em carne e osso? — indaguei, surpreso.


— Você quis dizer em pura alma… — Afirmou Clarice, chegando com sua voz pausada e flexível.


— Que privilégio encontrar os amigos que poderiam ser o pai e a mãe da minha nova alma! — exclamei.


— Ah, Bion, Bion. Sua alma é velha, — Nietzsche riu. — Mas, diga lá, como vai o mundo?


— Uma droga. Pior do que você deixou. Tem muito congestionamento e muita gente na cidade. Milhões de pessoas passam por nós todos os dias, sem que possamos imaginar o que elas vivem, tão rapidamente elas passam por nossas vidas.


— Não é uma droga o mundo, Bion… — Clarice se aproximou, falando devagar. — Você é que mora na cidade errada. São Paulo não foi feita para viver, apenas para existir.


— E como vocês se encontraram? — perguntei curioso.


— Fui eu que a recebi quando ela veio para cá. Esperei-a justamente no lugar em que te encontrei, — disse Nietzsche.


— Eu não posso crer que você, que sempre condenou o acaso, ficou na porta esperando quem vem de fora!


— Não, Bion, não se precipite. Sempre fui apaixonado por Clarice. Eu ansiava pela chegada dela. Desconfiei que ela entendia os homens, como de fato entende. Ela sempre foi uma das grandes mulheres elevadas. E como você deve ter lido em mim, as mulheres elevadas são superiores aos homens elevados. Tive de enfrentar uma grande concorrência. Ela se compadeceu da minha loucura antes da morte. Achou que eu a merecia, não é mesmo, Clarice?


— Não foi bem isso, não… — ela fez uma pausa. — Por que será que vocês, homens, por mais distintos que sejam, vivem querendo ensinar uns aos outros como conquistar uma mulher? Isso não deveria ser um segredo de concorrentes?


— Não para o nosso convidado. Não esqueça quanto ele nos ouviu nos livros; posso dizer tudo o que penso ao Bion, embora ele esteja longe do além-do-homem, como muitos que vivem no sul. Sinto compaixão por ele, que me lembra tempos imemoriais. Bion parece um nômade. Vive numa grande cidade, entre milhões de seres humanos. Age e pensa como se não visse ninguém, como se não precisasse se aproximar. Joga ouro na lata do lixo. Sua nobreza é tão involuntária que chega a ser bela. É por isso, e muito mais, que ele é meu amigo.


— Bion... — disse Clarice, tocando com a mão a minha própria. — Esta ilha é a paragem dos grandes encontros. Prepare-se. É possível que te enviem para cá quando você tiver morrido de verdade. Imagine que Nelson Rodrigues e Voltaire vivem brigando pelo amor de Cora Coralina. Mas ela quer ficar só.


— E o Wilde fica com a Cecília Meireles, acredita nisso? — retrucou Nietzsche com um gesto italiano da mão direita.


— E, para completar, a Leila Diniz fica com o Bosie...


— Não creio…! — eu disse. — Justo o nefando! Essa história está parecendo o último capítulo de uma novela das oito.


— Mas foi justamente daqui da ilha que os roteiristas das oito tiraram a ideia de que a vida se resume a formar casais, como se fossem uma agência de casamento.


— Impressionante, impressionante…


— O Oswalde reconquistou a Tarsila e finalmente Mário assumiu a Anita.


— E por que isso de mulheres brasileiras? Ainda não ouvi falar de Melanie Klein, Hannah Arendt, etc.?


Nietzsche olhou ressabiado para Clarice e quis responder, mas ela mesma o fez:


— Foi uma ordem dos demônios de Hades. Segundo eles, só a mulher brasileira perfeita é capaz de manter a harmonia entre esses bárbaros distintos. Se não fossem elas, eles seriam enviados sozinhos para além de Hades. Sabe o que significa a morte da morte? É por isso que Platão e Aristóteles fundaram dois monumentos contrários e lutam por um consenso para saber qual dos dois vai arrematar a Gisele Bünchen. Acredita?


— Acredito, mas que lembra os tempos do Benito de Paula, isso é verdade: “Mulher brasileira em primeiro lugar!”.



In: CASTRO, João Rosa de. Oficina de Ficção. 2ª ed. São Paulo: Autopublicação, 2019. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/oficina-de-ficcao>

 
 
 

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating

©2018 by Pedra de Toque. Proudly created with Wix.com

bottom of page