Antes do Crepúsculo: compra no arraial
- João Rosa de Castro
- 22 de jul.
- 5 min de leitura

Odete seria freira assim como Onofre já se ordenara padre havia mais de dez anos. Eram os irmãos mais novos de uma casa de sete.
A casa fora grande, muito grande, e era velha, muito velha, erguida em Senhora dos Remédios, uma cidadezinha com pouco mais de dez mil habitantes, e que tinha sido subordinada de Barbacena, nas Minas Gerais.
O pai tinha suas vacas, suas bestas, sua lavoura de arroz para cuidar. A mãe fora diretora na escola infantil e agora se dedicava à vida social, à família e aos cristos.
Nas idades casadoiras, Odete abandonou um projeto de família, um arranjo de casamento com um filho de fazendeiro distante, mas compadre dos pais.
Entre casar e amargar uma vida com o cidadão com aquela “barriga-de-cerveja” e ser freira, ia levando a opção primal dos pais. Seria freira.
Mas como? Dizia-se que homens eram “coisinhas tão gostosinhas” e ela enredada nos planos dos pais não poderia se dar ao luxo de “escolher” um. Estava quase deixando de ser a possuidora de tudo o que uma mulher tem, inclusive a doçura esperada, e se tornando amarga. Porém, decidiu investir no rosário mesmo assim.
Pensava ser a mulher moldável às circunstâncias a ela dadas, flexível ao que determinava o seu meio, menos rebelde que os homens. E Odete estudara, era pedagoga, trabalhava na escola principal do município. Pensava sim ser maleável. Tentava manter-se uma mulher como as outras, principalmente isto: igualdade em primeiro lugar. Nada de espalhafato, nada de ridículo. Nada de exuberância.
Tentava acreditar que aquilo que as moças diziam das paixões era apenas modismo. Os homens eram todos uns trastes. E com efeito seria bom se casasse com alguém que escolhesse, seria bom se seguisse a vocação da igreja, seria bom se casasse com um noivo arranjado. Tudo poderia ser deveras muito bom. Como tudo poderia ser péssimo, se ela não tomasse as rédeas da própria vida e não fizesse dela a melhor vida que se pudesse viver.
Sim. Seria freira. Estudava a vida da Madre Tereza. Procurou alguns filmes para assistir envolvendo a vida das irmãs. Assistiu Les Innocentes contando a atrocidade da vida das freiras e, mesmo com receio do que poderia encontrar pela frente, decidira. Ia ser freira. No entanto, sempre encontrava um motivo para procrastinar. Tremia quando pensava no apostolado.
Além disso, não seria aprovada então. Estava com muitas dívidas do empreendimento na boutique que dirigia. Enquanto esperava, participava das comunidades contemplativas, mas decidiu se dedicar às artes visuais.
Estudou arte viciosa e autodidaticamente. Pintava os quadros que admirava e que muitos amigos e parentes queriam expor e comprar. Mas não os vendia, ainda que os expusesse nas escolas, nas igrejas, nas instituições públicas de Senhora de Remédios. Pintava por motivos estéticos e não financeiros.
Parecia ter vivido muitos invernos em Portugal e noutras partes da Europa. Desenhava casas anônimas e pintava-as de maneira formidável. Não se poderia imaginar que não tivesse conhecido aquelas paragens pessoalmente e até vivido lá visceralmente e por muitos anos.
Odete embelezou as paredes da sala, da copa, da cozinha e dos quartos com suas cores e suas instalações.
Os familiares que visitavam a casa ficavam impressionados com a qualidade estética daquela obra. Queriam levar, queriam comprar, mas ela se recusava a deixar sequer um quadro ou uma instalação sair dali.
Se as dívidas se amainavam na boutique e no trabalho, aumentavam na compra de material e matéria-prima para a arte de Odete. E a vocação convocava. E as freiras estavam convencidas de que ela em breve iniciaria os estudos apostólicos. Algumas irmãs entortavam o nariz para sua arte, como quem lhe quisesse negar ao menos um pedaço do reino dos céus. Mas ela não se importava. Interagia com artistas de ambos os sexos. Era cobiçada e desejada. De modo que se tornou uma profusão de sentimentalidades o que trazia dentro de si.
Trouxe os ancestrais de volta. Parecia estar no Porto, de onde proviera seu tronco familiar. Os quadros tinham tudo, cores, brilho, beleza, às vezes, sublimidade, mas faltava uma coisa que tornava sua obra inusitada. Nunca pintou sequer uma vez a pessoa humana, nem mesmo uma silhueta perdida por aquelas janelas das casas que pintava.
Gente havia que dizia sua obra nazista, comparando-a com a arquitetura de Hitler, que não desenhava curvas, motivo suposto de não haver sido aprovado na Escola de Belas-Artes e se frustrar desde o que fez até o suicídio. Outros defendiam-na dizendo que as muitas árvores de Odete não se poderiam comparar às persistentes linhas arquitetônicas do führer.
Independente disso, ela continuou com tudo: a escola, a boutique, as artes e a vida ascética com as irmãs da comunidade. Sem falar das amigas.
Contudo, as amigas citadas, solteironas ninfomaníacas, as amigas de Odete, insistiam para que ela simplesmente “deixasse a vida lhe levar”. Chamavam-na para muitas festas para as quais ela não ia, mas às vezes partia com algumas delas para cidades vizinhas, como Vitorinos, Ressaquinha, Barbacena, etc.
E foi em Alto Rio Doce que, num carnaval de nada, num carnavalzinho bobo, Odete sentiu o que algumas mulheres chamam de “arrebatamento” — por Dimas. Ele, que para ela era o seu material man, substituiria a beleza de todos os seus quadros, era digno, por seu cavalheirismo e fineza, de toda a contemplação que ela buscava na igreja. Seria Dimas o semeador do seu campo. A recíproca parecia bem verdadeira, Dimas também ficou impressionado com sua postura no primeiro encontro. Um campo vital. Uma mulher fatal.
Namoraram em segredo, às noites. Odete chegava tarde em casa. Encontravam-se em Barbacena, nos lugares mais interessantes da cidade. Os pais ficaram desnorteados. O padre Onofre tentava assuntar. As irmãs acudiam para o celibato. Os irmãos comentavam. Mas, em vão, ela estava cega de amores por Dimas. Era já doentio o que viviam. Que dizer de semelhante despropósito que aconteceu depois?
Ao cabo de seis meses, ela estava grávida de Dimas, que morava no Rio de Janeiro e visitava os pais e tios em cidades vizinhas de Remédios, de onde partia para encontrar Odete.
Famílias e mais famílias ligadas ali a um catolicismo ferrenho e atroz que seria ultrajado por um casal que dissuadia a vida duma futura freira. Seria uma heresia? Seria um casamento infeliz?
A mãe chorava desconsolada, o pai pensava em que fazer, que dizer, como agir. Os irmãos se posicionavam nos prós e contras. E ela estava decidida. Ia-se casar.
No entretanto, quando o pai apontou a Dimas o casamento malquisto, este revelou um pormenor: “tinha uma parceira no Rio de Janeiro com quem comprara um carro e uma motocicleta”. Só poderia se desanuviar da relação com a parceira, que tinha sido só namorada, se pagasse a quantia de dez mil reais a título de devolução daqueles bens, dinheiro aquele de que ele não dispunha, então.
A ex-namorada já estava sabendo da gravidez e exigia o montante devido; do contrário, ela iria “rodar a baiana” na pequena cidade. E foi assim que Odete comprou o marido — e a boca do mundo fez silêncio.
In: CASTRO, João Rosa de. Antes do Crepúsculo. 2ª Edição. São Paulo: Clube de Autores, 2025. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/antes-do-crepusculo >





