Uma Pausa para o Ego: Programmé
- João Rosa de Castro
- há 5 dias
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Aparecido acordou de um desmaio. Estavam esperando o socorro, que haviam chamado havia mais de quarenta minutos. Finalmente, seu amigo Vítor chegou de carro. Ia levá-lo ao pronto-socorro, mas ele tinha acordado. Os vizinhos conversaram ainda um pouco e foram dispersando aos poucos. Até que ficaram apenas os dois amigos na pequena casa que o pai de Aparecido deixara para ele entre as casas de cômodos daquele quintal escuro.
— Sua pressão está sete por cinco, Cido… Acho melhor irmos ao pronto-socorro antes de a ambulância chegar. — Dizia o amigo, apreensivo, depois de repousar o aparelho sobre a mesa de computador da sala de Aparecido.
— Ela vive baixa. Eu não tenho tido apetite direito. — Aparecido arrematou, como quem revelasse com algum pudor que não se alimentava fazia algum tempo.
— Onde você estava quando desmaiou? — Indagou Vítor a esquadrinhar a situação.
— Estava aí onde você está sentado. Exatamente nesta poltrona. Tinha chegado do mercado e distribuído as compras na geladeira e no armário. — Aparecido tremia notadamente. E isto deixava o amigo ainda mais preocupado.
— Acho que vou beber água de coco. É um santo remédio quando não tenho apetite. — Acrescentava o doente…
— Posso ir buscar. Onde está? Na geladeira? — Disse levantando o Vítor, com aprovação e confirmação do dono da casa.
***
Depois que todos os exames e procedimentos comuns ao caso de Aparecido foram realizados, e sua pressão se estabilizou, ele estava bem e recebeu alta.
Eram dezenove horas quando Aparecido saiu do hospital com Vítor. Foram para casa e conversaram mais:
— Você tem ideia do motivo por que desmaiou, Cido? — Vítor era persistente. Era daqueles homens que estavam sempre procurando a causa das coisas, e não deixaria Aparecido em paz enquanto não tivesse ao menos um esboço do acontecido. Queria muito bem ao amigo. Já lá se iam mais de trinta anos de amizade. Tinha cinquenta e cinco anos, ao passo que Aparecido era dez anos mais velho.
— Já no hipermercado, não sei se por causa do frio dos refrigeradores, eu comecei a transpirar mais do que o comum. Um suor frio que me preocupou. — Foi lembrando Aparecido, para satisfazer a curiosidade de Vítor.
— Você tinha passado por algum estresse ou ansiedade? — Vítor aqui pareceu ao outro um médico chato que quer sondar o insondável.
— Ah, Vítor, estresse nos dias de hoje é inevitável: são as caras e bocas dos meninos, as caras feias dos mal-humorados, as reclamações das mulheres, os comentários maldosos dos vizinhos e muito mais… — Enumerou Aparecido como quem tinha ainda mais para dizer. — Porém, nada de mais específico. Quanto à ansiedade, isto também é um mal que me consome faz tempo. Tenho até bruxismo por isto. Minhas próteses estão entortando de tanto que eu as mordo em vão. O cigarro é a minha saída. Um paliativo. Definitivamente, não devo ter desmaiado por nenhum desses dois motivos.
— Uma coisa que também parece simples, mas causa desmaio, é a mudança de posição. Você deve ter mudado de posição no mercado, mas se fosse por isto não teria desmaiado aqui, mas lá mesmo. Se bem que se abaixou e levantou para pôr as coisas no armário e na geladeira — Vítor disse, ao mesmo tempo se corrigindo, e, depois, costurando o próprio discurso. — Você não tem diabetes, que eu saiba…
— Eu hein, Vítor. Você está pensando o quê? Meus exames são todos ótimos. Se bem que por isto mesmo é que eu também estou preocupado com esse desmaio. — Vociferou Aparecido com reprovação ao amigo e logo em seguida se desculpando.
— Estou preocupado com você, Cido. Seu pai, que estaria com você numa hora dessas, não está mais presente entre nós…
— Você está preocupado com você, Vítor. — Interrompeu Aparecido com o vitimismo que o caracterizava.
— Você poderia estar tendo um começo de infarto, Cido…
— Ah, vai, Vítor. Nunca tive histórico cardíaco. Nem meus pais tinham nem faleceram por motivo parecido. — Ironizou Aparecido, como se nunca fosse morrer.
— Pode ser labirintite. — Arrematou Vítor, dando uma gargalhada.
— Ai, Vitor. Mas agora sem brincadeira. Tem certas coisas que acontecem no nosso corpo que morremos sem descobrir como foi que aconteceram. Fazemos conjecturas, levantamos hipóteses, lembramos falas, comportamentos, mas nunca sabemos. — Afirmou Aparecido, em tom de consolação. Desconfiava mesmo que, se tivesse morrido, o amigo ficaria sem amigos.
— Bem, nesta dúvida cruel, só temos em nosso favor que pode ter sido queda da pressão arterial, porque quando cheguei aqui estava muito baixa, e isto você não pode negar. — Disse triunfante Vítor, sabendo que a queda brusca da pressão também pode causar desmaio.
— É, mas deixe isto para lá, Vítor. Vamos pedir um sanduíche, que eu estou é com fome. E calculo que você também está…
***
Depois de comerem, os amigos lembraram das aventuras de tempos idos, contaram histórias vividas juntos e sozinhos, falaram de ideias e teorias, falaram de futebol e de arte. Vítor partiu cerca de nove horas da noite.
Aparecido entrou depois de despachar o amigo e ficou pensando em tudo. Estava tranquilo. Mesmo desconfiando, como desconfiava de todos, considerava Vítor um amigo de verdade.
Por fim, sentou novamente na sala e observou os objetos. Não tinha filhos nem animais de estimação. E os seus afetos eram os seus objetos. Os penduricalhos com que fora presenteado de viagens dos amigos e familiares, os utensílios coloridos pendurados em sua cozinha americana, e, mais importante que tudo, as etiquetas das roupas que ele comprava nos shoppings e que encomendava pela Internet. Mais importante, sim, porque em uma das etiquetas, de havia cerca de quinze anos, de uma camisa azul e cor-de-rosa de grife, de que tanto ele gostava, ele avistou algo escrito com sua própria letra na cor vermelha por sobre o branco da etiqueta. Era uma data: dois do dois de dois mil e vinte; e, também, uma hora: vinte uma e quarenta e cinco.
Aparecido levou um susto quando se lembrou. Era a data de sua morte. Era exatamente naquela data em que ele estava. Havia quinze anos, ele calculara o número de horas que ainda queria viver. O fim daquelas horas dava naquela data e naquele horário, que ele anotou na etiqueta. Calculando direito, Aparecido morreria, portanto, dentro de trinta e cinco minutos, se fosse conforme a vontade dele de outrora. Ele ficou estarrecido. Passou um calafrio em seu corpo. Resolveu sentar novamente no sofá e fumar. “Ah. Isso é besteira”. Disse a si mesmo, como quem buscasse uma prorrogação. Mas não. O tique-taque do relógio de parede tornou-se algo ensurdecedor aos seus ouvidos naqueles segundos que levavam às vinte e uma e quarenta e cinco, enquanto ele esperava passarem os minutos.
Até que, quando bateram nove horas e quarenta e cinco minutos cravados, ele pareceu ter desmaiado novamente, porém, desta vez, para nunca mais acordar. E o tique-taque se afogou no silêncio!





