top of page

Oficina de Ficção: histórias contadas

  • Foto do escritor: João Rosa de Castro
    João Rosa de Castro
  • há 6 dias
  • 7 min de leitura

ree

…As histórias contadas são uma atividade da quinta-feira. Mas está difícil contar histórias na quinta ou de lembrar as que foi possível contar. Portanto, vou contar resumidamente a história deste sábado. E hoje foi um dia muito rico em conversas por telefone, por e-mail e pessoalmente.

Acordei às nove e pouco querendo fumar. Dormi novamente e, quando despertei, pensava que tinha perdido o horário de ir pagar a conta da ótica. Por sorte ainda eram onze e quinze. Escovei os dentes, tomei banho, me vesti depressa. Estava preocupado com o horário. Se não fosse hoje pagar essa conta e a do aparelho de DVD, não saberia quando poderia fazê-lo depois; e dinheiro na mão é vendaval.

Mesmo assim, telefonei para Ângela e perguntei até que horas a ótica ficaria aberta. Ela disse que ficava até dez para as duas. Tive um alívio. Pude conversar melhor com Chiquinha. Pena que ela me lembrou amarga que “eu havia me esquecido do seu aniversário na sexta e ainda lhe dera o amargo presente de levar o cartão, não atender o celular e deixá-la sem dinheiro nem como sacar”. “Obrigada pelo presente!” Disse ela ressentida. Tive uma sensação nova. Eu nunca havia me esquecido do aniversário dela. Sempre fora o primeiro a trazer-lhe flores ou perfumes. Mas enfim. Pensando sobre isto ao longo do dia, concluí que de certo modo foi bom ter esquecido. Dá a ideia de que não estou tão ligado a ela como antes, e pode ser um motivo para fazer de cada dia do ano uma ocasião para compensar a falta grave.

Mas não teve rancor. Prática como sempre, pediu que eu sacasse dinheiro para ela e depositasse a mensalidade do cartão de Núbia. Fui. O ônibus já vinha quando atravessei a rua. Desci à Cidade Nova e tomei o 1178. Cheguei à Ótica Reitor. Paguei bem, conversei um pouco com Ângela sobre política. Para ela estava fácil. Se tinha votado no Alckmin no primeiro turno, no segundo é que não teria dúvida. Eu é que não sabia em quem votar e dizia que pela primeira vez talvez anulasse o voto, pois queria um ateu no poder e mais ninguém. Um ateu no poder executivo era o meu sonho mais novo em relação ao futuro do Brasil. Ângela, como a maioria das mulheres com quem falei sobre o assunto, disse “que ia votar na Heloísa Helena, mas optou pelo voto útil; sabia que ela não ia ganhar.”.

A Relâmpagos tinha fila. Fila para comprar, fila para abrir crédito e fila para pagar conta. Pensei com desprezo que poder aquisitivo é possível dizer que o brasileiro da classe média baixa tem. Mas pensei bem: poder aquisitivo apenas, o qual difere muito do Poder de criação, o Poder propriamente dito. Consultei os boletos; mostravam a décima prestação paga. Se não fosse essa compra, como é que eu teria assistido filmes tão bons como O Segredo de Brokeback Mountain, Tudo em família, Diário de uma paixão, O Libertino e, principalmente, Conde de Monte Cristo?

Na lotérica, levei um susto! A fila estava já na calçada. Precisava ficar naquela fila. Mas como estivesse faminto, perguntei à moça até que horas ficaria aberta. Pelo horário que ela me disse, daria tempo de almoçar. Voltando depois, a fila estaria menor e, uma vez saciada a fome, não estaria tão irritado com as gentes. No restaurante, em que a dona do caixa é sempre tão simpática, lembrei que a feijoada não estivera boa no sábado anterior. Não comeria feijoada. Depois raciocinei, parando um pouco: mas como? Só por que estava ruim uma vez quer dizer que estará ruim sempre? Me adverti dizendo meu nome com desdém para mim mesmo dentro da minha cabeça. “Você é muito radical com os outros” completei lá dentro.

Na fila do bufê, encontrei, pela segunda vez, no mesmo restaurante, a professora Sinatra, que foi minha professora de canto. Não sei se ela se esqueceu de mim ou não lhe agradaria me cumprimentar e ter de travar uma longa conversa; afinal estava acompanhada de um casal com uma criança. Fez que não me viu. Eu retribui o gesto, com discrição e sem rancor. Decidi pela lasanha de frango, que depois também não me agradou. Mas gostei do lombo e, sobretudo, do cupim, elogiando-o até à moça do caixa que sempre me pergunta a opinião, na saída.

Enquanto comia, observava a classe da professora. Como podia integrar aquela professora a Pedro Viriato, professora de Educação Artística! Sempre fazendo as vezes de maestro na hora do hino nacional, pedindo silêncio com um Shhh! muito longo. Como podia ser que aquela professora autêntica ao piano, ágil e intensa e aristocrata, não pudesse nem me dizer um simples “oi”! Ninguém me ignorava assim; era a frase dos ressentidos. Depois me lembrei de Guilherme. Também ele detestava reencontrar os alunos de datilografia que lhe viessem lembrar o quanto ele os havia ajudado e coisa e tal. E ainda eu mesmo, que já tive calafrios ao encontrar ex-aluno meu em botequim e ficar sem saber como me portar. Assim relevei o silêncio da professora. Professor sofre e ex-professor mais ainda com esses encontros inesperados. Mas não deixei de observar: seus olhos continuam azuis, seu corpo ainda escultural – esta mulher não envelhece. Agora ainda ficou loira, e a cor da pele e os olhos acolhem bem esta cor dos cabelos. Comia bem e se distinguia do comer dos demais. Depois de almoçados, ela levantou e levou o prato para os fundos do salão. Quando voltou, depois de entregar o novo prato vazio para a comensal amiga e oferecer um outro ao comensal que devia ser marido desta última, o qual rejeitou-o, ambas seguiram para o bufê de sobremesas. Num desses momentos, olhou para mim como quem quisesse cumprimentar com afeto, mas pareceu receosa. Meu olhar neste momento era demasiado acolhedor. Daqueles que expressam uma intenção de conversar longamente. Com isto, ela baixou novamente o olhar contrariada e, uma vez sentada, desdenhosa. Muitos momentos bons passaram como num flash na minha memória enquanto eu a observava. A musicista continua uma mulher bela, confirmando a teoria wildiana que diz: “a beleza é a única coisa que o tempo não fere!”. Deixei um pedaço da lasanha no prato. Bebi o refrigerante. Nada de sobremesa. Saí apressado e um tanto frustrado por não ter podido conversar. Quem sabe uma próxima vez?

Na lotérica novamente, fiz um esforço para suspender a vaidade que exerço no fim de semana religiosamente. Não consegui. A fila continuava longa. Cheguei a pegar um bilhete da megassena e escolher meus números para o jogo mensal. Tentei encontrar na fila qualquer pessoa que pudesse tomar por bela, mas não havia ninguém. Julguei mais uma vez não ser capaz de reconhecer o belo corpo — isso era coisa de mulheres, insistia comigo mesmo. Raciocinei que só a mulher neutralizava uma possível fealdade física, ou ainda podia tornar belo com sua beleza um filho de um pai mal aparecido, e era por isso que só ela podia avaliar um corpo belo. E quanto mais feia uma mulher, mais ela sabe o que é um corpo bonito. Porque se admitindo feia, procura um homem bonito para equilibrar, e essa procura ensina a ela o que é a beleza do corpo. Era isto que eu queria pensar. Com isto, a mulher feia se torna indiretamente bela. Sua beleza está no malabarismo que faz para chegar ao belo corpo nos filhos. Enfim, pensava eu. Então todas as mulheres aqui são belas, até as feias. É. Respondia pensando. Mas hoje é sábado. Eu não deveria estar na fila de uma casa lotérica. Isto é patético. Num átimo, saí da fila, joguei no lixo o bilhete da megassena e tive a ideia de tomar o ônibus, ir até o mercado e sacar de lá o dinheiro de Chiquinha. No mercado, a fila do Banco 24 horas era menor, além do mais eu poderia comprar o vinho que prometera a Guilherme para a noite, os sucos que beberia nas manhãs e o estrogonofe que pensara em preparar no domingo.

Depois disso fui ao mercado, peguei uma fila curta, mas de gente lenta, liguei para Guilherme, convidei-o para a noite em casa, entrei no mercado, comprei tudo de que precisava, voltei para casa, saí novamente para perto de casa, comprei papel e pasta do mapa espiritual para levar como doação ao centro de Umbanda, comprei os frios para o café da manhã da semana, voltei para casa; Guilherme ligou, agendou para as dez horas, liguei para Naím, falei com Fedora sobre a vaga de tradutora de espanhol, liguei para Mirna, ela ficou de retornar, liguei para Bruno, ofereci a vaga de tradutor de inglês, ele indicou Manoel, liguei para o Daniel, caiu na caixa postal, liguei para Gabriela, ofereci a vaga fatídica, ela aceitou, ficou de pensar, mas disse que poderiam ligar na próxima semana, liguei para Simone, falamos, falamos, matamos a saudade, pusemos o papo em dia, vim para o computador, redigi e-mail para Ceiça, enviei. Quando já estava no meio dessa atividade, Guilherme chegou, sentou-se e começamos a conversar — quis cigarros, Antony foi comprar, bebemos café. Leopoldina apontou no portão, o carro se esvaziava, as crianças saiam afoitas, Núbia conversava ao portão com a vizinha, Thiago trancava o carro, Leopoldina reclamou que eu a vira e fingira não tê-la visto, expliquei que pensava ser ela uma vizinha que me desagrada, entraram todos, Chelidon estava linda como sempre. Antes mesmo de entrarem todos eu já perguntei a Thiago quanto tempo ele considerava que um funcionário exemplar deveria esperar por uma promoção, ele explicou tudo sobre isto, ficou na sala conosco, os demais foram para a copa; ele contou casos de roubo, falou sobre promoções várias, falamos sobre nossos pais; depois Núbia juntou-se a nós, conversava com Guilherme enquanto eu ouvia Thiago, as crianças corriam pela casa, Leopoldina, Chiquinha e Zoélia conversavam baixo na cozinha, ofereci vinho para todos, cantamos parabéns para Chiquinha e bebemos vinho. Eles foram embora, ficamos nós três e os meus sobrinhos, Marlon e Antony; eu aconselhei Marlon, Guilherme aconselhou Marlon, a Chiquinha aconselhou Marlon, e Antony só com o olhar; Marlon discordou do meu conselho, do conselho de Guilherme e do de Chiquinha. Reclamou que eu pensava muito no social, ele era antissocial, eu perguntei a ele o que estava fazendo, pois, no meio de nós, ele se irritou e disse que ia embora, chamando o Antony por companhia, eu disse que ele fosse só, porque o antissocial não gostava de gente, e o Antony era gente e não antissocial. Antony disse que o acompanharia, já que também desceria para casa. Partiram. Falamos ainda muito eu e Guilherme. De sexo, de política, de beleza, de miséria, de celulares, de nossos irmãos, dos que não sabem escrever porque só obedecem aos pais que também não o sabem e nunca os professores que sabem. Ele se despediu e partiu. E eu comecei a escrever este texto, que termino aqui cansado e ávido por cama…

28/12/2006.


[CASTRO, João Rosa de. Oficina de Ficção. 1ª edição. São Paulo: 2019].

 
 
 

©2018 by Pedra de Toque. Proudly created with Wix.com

bottom of page