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Fogo Fátuo: depois que se cai nas mãos do médico

  • Foto do escritor: João Rosa de Castro
    João Rosa de Castro
  • 15 de jul.
  • 3 min de leitura
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Ele não admitirá que você tenha prazeres sensoriais na medida que lhe apetece. Jurou ao estado que está pela vida. E todo juramento, até mesmo o seu, está pela vida. Qual juramento estaria pela morte ou pela degenerescência? Ninguém jura degenerar: disto a natureza se encarrega.

Mas, quando você cai nas mãos do médico, é como se contasse uma mentira grave: precisaria inventar outras vinte mentiras. O médico lhe encaminhará para vinte outros paramédicos. Ou mesmo para outros médicos. E você nunca mais poderá arriscar em ter algum prazer sensorial. Terá muito prazer intelectual. E os médicos acreditam que isto é bastante. Basta recordarmos Hipócrates, a quem seu alimento haveria de ser seu remédio, e vice-versa. E Freud, também, que queria ser desejado intelectualmente!

Aí eu pergunto a médicos como o ilustre finado doutor João Guimarães Rosa: e os sarapatéis apimentados? E o uísque com umas pedrinhas de gelo numa sexta-feira de verão? E a feijoada completa no inverno, abastada, suculenta? E a caipirinha? E a cachaça, quando não temos amigos, e é a solidão quem nos serve de companhia, acompanhada de um bom vermute? E as batatas fritas dos meninos e das meninas, com muita maionese e quetichúpi? E as pizzas de todos os sabores imagináveis? E a costelinha simples na panela de pressão? E as cigarradas longas regadas a café adoçado? E os câpiqueiques e os sorvetes? A quem servirão?

Sabemos que não apenas isto, mas tudo mais que se imagina ingerir é supérfluo e secundário, porque o filósofo asseverava que a fome não indica haver algo que a sacie.

E muita vez estamos com fome... Porém, se formos averiguar bem, não é bem fome o que sentimos. É outro incômodo de que nos evadimos e que nos aparece com o sintoma de fome. Veja se há apetite! Veja se há coragem para ir plantar a batata, regar, colher (ou comprar), descascar, fritar, refogar. Não há. Só há a mágica do passar no quetichúpi e na maionese, mastigar e engolir. Enquanto estamos comendo, sentimos um prazer adicional à saciedade da fome que nos leva a pensar coisas muito interessantes acerca da batata, e que não queremos investigar.

Daí sim surge o apetite com suas acepções todas. Depois de dias, a memória do prazer sentido ali nos leva a tentarmos sentir novamente aquele prazer com o fito de fugirmos de qualquer dor recôndita. Donde comermos às vezes com apetite e sem fome e noutras com fome e sem apetite ou sem nenhuma das duas ou com ambas.

E por que será que nos evadimos àqueles incômodos que ganham o nome de fome no lugar de enfrentarmo-los com o pensamento e a reflexão e a ajuda da memória e toda a parafernália que trazemos dentro?

Talvez a maioria antissocrática esteja pouco se importando consigo mesma e opte pela via mais óbvia. Cara feia para mim é fome. Diz o adágio. Creio que se pensarmos melhor… Há caras feias por diversos motivos dos quais estamos fugindo com receio de nos transformarmos em algo que o médico queira que sejamos, mas que nós mesmos não queremos ser.

Logo, não caiamos nas mãos do médico. Se cairmos, porém, a solução será pensar Sócrates como um bom companheiro e passar a conhecermo-nos a nós mesmos, dizer adeus aos prazeres sensoriais e viver de saudade, correndo, é claro, e ainda, o risco de dar de cara com a cicuta fatal.


In: CASTRO, João Rosa de. Fogo Fátuo. 1ª edição. São Paulo: Clube de Autores, 2024. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/fogo-fatuo >

 
 
 

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