Fogo Fátuo: Parcifal

O patrimônio intelectual de um analfabeto versus o patrimônio intelectual de um grande estadista, filósofo ou músico.

A distância entre esses dois patrimônios é entendida como sendo exorbitante, incalculável. Os estudiosos da física ou da matemática não são capazes de avaliar semelhante distância.

Contudo, a carga de opressão que o estadista, o filósofo ou o músico acomodou em sua psique em troca de seu patrimônio intelectual reduz em muito sua liberdade como outro ativo, que no analfabeto abunda.

O analfabeto é mais livre. A oralidade está mais próxima das sensações, das emoções, dos sentimentos e dos pensamentos. Ouvir e falar simplesmente enquanto vive: como era livre o homem pré-histórico sem que o soubesse!

Alguém rabiscou a parede da caverna e apontou para a boca ou para um objeto asseverando que as duas coisas (a fala e a escrita e, ainda, a coisa) eram a mesma coisa. Quanta pretensão! E a despeito desse equívoco, temos o que hoje chamamos lei.

Tanta saliva, tanto mau ou bom odor, tanto mau ou bom sabor, o bom e o mau timbre, expressões afetivas, etc. estão atrelados à fala e apenas adivinhados na escrita! São sensações pressentidas e percebidas, acomodadas e assimiladas como símbolos de entendimento nas relações através dos afetos, mas que nunca serão transmitidas num livro, por exemplo, ou numa tábua de valores. Nem mesmo através da mais sincera metalinguagem!

Porquanto se tampouco a expressão da fala traduz os sentimentos perfeitamente, imaginem-se embotados e desbotados eles através da escrita, em sua frieza! Que sentimento será este que tenho agora e que minha gente sequer imagina? Mas arriscamos em que iremos adivinhar e dar a adivinhar as coisas escritas.

Escrevemos e lemos, ainda, porque investimos neste risco! Risco, sim, porque a qualquer sintagma, a qualquer pingo no i podemos ser deturpados! É porque não temos diante dos olhos o nosso interlocutor, o nosso amor, o nosso grão, o nosso graal!

In: CASTRO, João Rosa de. Fogo Fátuo. 1ª Edição. São Paulo: Clube de Autores, 2024. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/fogo-fatuo>