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Memórias de um Abiã: candomblé biscoito fino

  • Foto do escritor: João Rosa de Castro
    João Rosa de Castro
  • 5 de nov.
  • 5 min de leitura
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O dia do grande candomblé chegou. Os orixás estavam ávidos por tambor e dança. Por isto, as horas do dia voaram. Quem me recebeu foi Baba Adalberto de Omulu, mais uma vez. Mais uma vez, ele estava lá às dez em ponto em torno do portão.

Fiz diferente. Como já tomara banho em casa, evadi-me ao banho de chuveiro e apenas tomei um copo d’água de Ossaim, no porrão, levei para o banheiro e molhei somente as partes do corpo que são tocadas no jogo de ibo. Para evitar desavença, uma vez que havia mais gente na roça, e também porque Baba Jaci de Oxumarê estava hospedado no quarto ao lado do banheiro.

Passei a manhã e parte da tarde me sentindo malvestido: estava com uma camiseta de Xangô funfun, calças bejes e chinelos pretos. Pelo menos, eu cogitava que, para a função, não haveria tanto problema estar assim, mas estava ansioso com que a festa começasse e eu não tivesse tempo ou oportunidade de me trocar para um traje mais adequado.

As equedes se movimentavam na cozinha, na companhia de Gisele de Obá; os ebomis e o iaô recolhidos subiam e desciam afoitos, rodando pelas portas; os ogãs também corriam contra o tempo, pois teriam um papel importantíssimo a representarem mais tarde…

De repente, chegou um homem vestido de verde escuro e vistoso, que parecia ter um posto relevante na roça, pois Bell de Oxumarê e Baba Adalberto de Omulu correram para tomar sua bênção, e eu os acompanhei, curvando-me talqualmente eles; chamavam-no de Babá Márcio. Ele subiu.

Mais tarde, cerca de onze horas, a mesa do café foi posta. Tomamos café como verdadeiros reis. Era uma comezaina em plena manhã: havia muitos quitutes: doces, queijos, bolos, sucos, iogurtes, etc.

Depois, o meio-dia apontou ameaçando a todos com sua seta apocalíptica; por sorte ninguém foi atingido. No Ilê de Airá, estávamos todos protegidos. Era mesmo para chegar as treze horas, depois as catorze; houve um ritual envolvendo sacrifício animal, atabaques e palmas; não posso afirmar que se tratava de um orô, ou se se tratava de obrigação por Axé; não pude participar do sacrifício, vi apenas a galinha depois de sacrificada na mão de Iá Pompeia de Iemanjá, que subiu a escada. Até que ela me pediu para ajudar na louça. Fiquei contente, afinal, ficando sem tarefa, tenho mais motivos para fumar.

Lavei alguns copos, pratos, panelas e talheres. Quando estava labutando com uma escovinha numa panela de pressão em que cozinharam canjica, Iá Elisabete foi até mim e disse: “então vou lhe ensinar como tirar esse grude sem fazer barulho. Ache uma tampa de garrafa de PET; passe a borda da tampa que sai rapidinho.”. Pedi para Felício de Airá ver se havia uma garrafa de PET, e fiquei impressionado com a facilidade para remover a sujeira com a tampa.

Lá pelas quinze horas, surgiram Iá Pompeia de Iemanjá e a iaô Cristina de Oxalá e de Oxum com três ou mais recipientes de quiabos para picarmos. Fui imediatamente ao quarto de trocar buscar meu eketé; pois, entre uma função e outra, fui advertido no jogo de ibo que eu tendia a não acatar a orientação dos outros e acabava por me prejudicar. Kekerê me dissera para nunca cortar quiabo sem proteção de cabeça. Ficamos, pois, cerca de uma hora picando quiabos. Eu com minha cabeça bem protegida, dessa vez.

Iá Formosa de Oxum tinha subido e dito que já desceria para dar tarefa para quem estivesse sem serviço. Fiquei esperando a atribuição até que Iá Pompeia de Iemanjá pediu ajuda na louça e no picar quiabos.

De repente, a própria Iá Formosa de Oxum desceu do terceiro andar e ficou lá embaixo arrumando a frente do Ilê, com as próprias mãos, lavando, organizando, com ajuda de alguns de seus filhos.

Quando ela subiu, já era hora de todos se prepararem e se trocarem para a festividade. Daí a pouco, os frequentadores começaram a chegar. A equede Iá Ana recomendou que eu fosse me trocar logo para conseguir um bom lugar de onde pudesse observar a festa.

Fiz isto. Porém, debalde. Quando cheguei à porta, o barracão já estava tomado de gente. Não havia mais espaço nos bancos em que eu pudesse me assentar. Mesmo assim, fiquei à porta, ainda que com vontade de observar da mesma posição de quem tem o Axé, ou seja, de costas para os atabaques. Mas não tomei essa posição com receio de bolar no santo e de desrespeitar o rumbê. Porque os atabaques verdadeiramente mexem com a parte africana de minha essência.

Por fim, os primeiros a chegarem estavam usando trajes comuns; e os que foram chegando à medida que o tempo passava usavam roupas extremamente exuberantes e coloridas, colares, fios de contas com bolas grandes vermelhas e brancas, amuletos, etc.; o que achei interessante é que alguns dos homens equilibravam o traje social (com paletó) e sapatos brancos, vermelhos e verdes, abertos no calcanhar (os babuches) e a indumentária orixá com suas cores.

As mulheres, que eram maioria nas voltas do xirê, estavam confiantes e, igualmente, trajando roupas coloridas cruzando o peito, algumas descalças, outras calçadas, e nenhuma perdendo o ritmo do tom dos orins e do som dos atabaques.

Senão quando, depois que todos tinham dançado, a fina-flor do ilê começou a descer para o barracão. Eu estava à porta esperando para ouvir o herdeiro Felício de Airá e Iá Formosa de Oxum; e acabei ouvindo também Baba Jaci de Oxumarê, que deu um discurso interessante na defesa do Candomblé dos preconceitos desfavoráveis e da banalização da religião em função dos excessos da tecnologia. Os três foram merecidamente bem aplaudidos. Tinha havido uma desavença em São Paulo entre Babá Jaci de Oxumarê e um homem que estava filmando uma divindade incorporada no corpo de um filho de santo, e Baba Jaci de Oxumarê fizera-lhe baixar a câmera. Depois eu até assisti em casa um babalorixá paulista demonizando Baba Jaci de Oxumarê por violência, não comprovada. Por fim, com eles, desceram também os dois homens recolhidos: Adriano de Odé e Raul de Baru. Todos os citados e mais alguns, que não reconheci, ficaram rodando em torno da cumieira, em sentido anti-horário, ao som da música.

Foi emocionante ver e ouvir, na roda, aquelas mulheres, que se dedicam absurdo nos bastidores, ali no coração do ilê representando as verdadeiras musas do Axé de Airá sob a organização de Iá Formosa de Oxum e seu consorte, Baba Luiz de Obaluaê.

Todos estavam muito felizes. A preparação e a festa demandaram esforço sagrado de todos, e o resultado provavelmente será a satisfação tanto dos convivas como de Xangô, Obá e Oyá. Axé! Laroiê, Exu! Saluba, Nanã! Bejiró Omi Bejada, Ibejis! Domingo, 24/07/2022 — 22h11 — 22ºC.


[CASTRO, João Rosa de. Memórias de um Abiã. 1ª edição. São Paulo, 2023].

 
 
 

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