Memórias de um Abiã: Capítulo 1 - O primeiro Amalá
- João Rosa de Castro
- 9 de jul.
- 6 min de leitura

Era de manhã! Telefonei para o Ilê de Airá. Tinha telefonado havia algum tempo antes, mas não conseguira falar. Tinha ido, havia mais de vinte anos, ao Ilê acompanhado de dois amigos. A festa de Obaluaê teria começado às onze da noite. Chegáramos às dez. Ficamos até a uma, e a festa não começava. Cada vez mais gente chegava. Até que, quando deu uma hora, decidimos que era melhor desistirmos daquele Axé tão importante; afinal, era perigoso andar por aquelas paragens àquela hora da madrugada. Mesmo assim, um amigo pretensioso insinuou que a festa não tinha começado em virtude de nossa presença. Porquanto, assim que saímos, os atabaques começaram a ecoar de lá de dentro. Ficou o dito pelo não dito. Ninguém poderia provar que era nem que não era este o motivo da demora para a entrada de Obaluaê. Admirei o bolo com cobertura cor de palha: sempre me interessou o bolo das festas.
Mas, era de manhã! Eu telefonei para o ilê de Airá! Ninguém atendeu até cair na caixa postal. Desliguei e desisti mais uma vez. Qual não foi minha surpresa quando na tarde daquele mesmo dia recebi o telefonema de lá. Era a própria Iá Formosa que queria saber quem eu era e por que eu havia telefonado. Disse eu que estava interessado em participar das atividades do Ilê como abiã. Fazia algum tempo que me interessara, desde que ouvi aquele babalaô dizendo que passara muitos anos num ilê aprendendo sobre os acontecimentos envolvendo os orixás.
Ela foi bastante solícita. Falou dos encontros, que ocorriam às quartas-feiras às dezenove horas, e que eu era bem-vindo. O encontro era o ritual de entrega do amalá de Xangô. Disse ainda que eu poderia participar da festa que ocorreria em julho: de Xangô, Obá e Oyá. Fiquei empolgado. Perguntei sobre a parte burocrática e financeira; como eu contribuiria além da participação com a ajuda nos afazeres do evento. Ela me disse a quantia com que os filhos da casa contribuíam. Combinei de ir lá na quarta-feira. E fui!
Estava vestido com meu moletom branco, simbolizando que ia em paz. Saí de casa às seis e meia, deveria levar quinze minutos a pé. Cheguei ao portão do Ilê às seis e quarenta e quatro da noite. Esperei passar um minuto e toquei a campainha.
Uma mulher de cabelos curtos, lábios grossos, usando saia cinza comprida abriu o portão, assomou a ele e me disse:
— Pois não.
Eu respondi:
— Boa noite. A Formosa está?
— Sim. Quem é.
— João.
— João… — Ela redarguiu com dúvida.
— Eu falei com ela anteontem que viria hoje.
Ela entrou sem que me pedisse para entrar, conversou com a Ialorixá em voz baixa e voltou dizendo:
— Pode entrar, por favor.
Entrei, fatalmente, com o pé esquerdo, depois de saltar a base do portão. Fiquei por ali pelo jardim de alguns arbustos e plantas em torno de uma árvore frondosa. Observei e tentei descobrir que árvores eram aquelas. A maior de todas e central era a de aroeira, outra dava umas flores vermelhas, mas que pareciam pinha; ao pé do jardim cresciam singônios. De repente, enquanto eu esperava, desceu pela escada um menino e disse que a mãe pedira que eu esperasse no barracão.
Eu disse: — Sim. — Avancei para o barracão e me sentei do lado oposto de onde havíamos sentado da outra vez; isto é, à direita de quem pudesse estar com o Axé. Fiquei ali observando as cores das paredes; eu tinha visto um vídeo da Iá pintando aquelas paredes havia alguns dias. Estavam limpas: brancas e azuis. Havia um monumento no centro do barracão, parecendo um grande pilão amarelo. Eu quis saber de que se tratava: fui até ele e observei dentro uma máscara preta com bordas douradas, um oxé para alguma imagem média de Xangô e outros objetos que tomavam um terço da parte interna do pilão grande. Até que Iá Formosa assomou à porta, veio em minha direção, eu me ergui, fui em sua direção, e ela me estendeu a mão.
Ela tomou a palavra sentando-se em uma cadeira ante o banco extenso onde eu estava sentado. Falamos. Eu disse que queria participar das atividades, ainda que não tivesse a pretensão de me iniciar no Culto dos Orixás; queria estar familiarizado com o Culto dos Orixás para, quiçá no futuro, me iniciar no Culto de Ifá detentor de maior conhecimento dos dois cultos. Ela disse que alguns babalaôs frequentavam aquele terreiro; havia um que tinha até mesmo um filho pequeno iniciado. Ela sabia da importância do Culto dos Orixás para um aspirante ao Culto de Ifá. Ficamos conversando por alguns minutos; ela falou de seu pai, que, antes de falecer, lhe legara a responsabilidade de cuidar do ilê, e que ela havia nascido lá. Tive uma ótima primeira impressão de Iá Formosa, que estava com uma saia amarela comprida, uma blusa branca, um turbante amarelo e brincos compridos dourados. Eu perguntei o que já tinha adivinhado.
— Você é filha de Oxum, não é?
— Sim. — Ela respondeu.
— Eu percebi. — Disse eu, receando estar invadindo a relação dela com o orixá.
Depois de alguns minutos que começamos a conversar, ela pediu que sua mãe passasse um café para nós. Conversamos ainda um pouco até que ela me convidou para subir para o café e para o amalá, o qual eu pensara que só seria servido na festa de Xangô, e ela disse que “não”. O amalá era de lei toda quarta-feira, naquela época. Subimos.
Na copa, havia uma mesa comprida de cimento e revestida em azulejos brancos, cerca de quatro pias e tanques, duas grandes prateleiras, uma com muitas panelas outra com muitas louças.
A mãe de Iá Formosa já tinha passado o café e me trouxe um pouco numa caneca branca.
Duas jovens se mobilizaram para lavar a louça que era posta para escorrer dentro de um dos tanques.
Iá Formosa ocupava-se com o amalá, picando cebola e abrindo o frasco de azeite de dendê. Pegou uma vela que estava quase no fim e colocou-a sobre a divisão entre a copa e a cozinha, de onde ia começar a cozinhar a iguaria.
Eu tive vontade de fumar, e, como a mãe de Iá Formosa já preparara fora o quarto de Xangô, pediu que eu fumasse à porta e me trouxe um pequeno alguidar, no qual eu poderia lançar as cinzas do meu cigarro. Perguntei seu nome. Ela disse se chamar Sofia.
Logo que subíramos, Iá Formosa apontara os quartos dos orixás, dos quais o único que me recordo era o de Xangô, de onde sairia o amalá logo mais, e o de Oxalá, logo ao lado.
De repente chegou um homem que me pareceu muito simpático e muito envolvido com o Ilê. Iá Formosa chamava-o de Adalberto. Eu e ele nos apresentamos naturalmente. Depois ele foi se trocar para estar vestido de branco na hora do ritual.
Quando Adalberto se aproximou da mesa, Iá Formosa ofereceu a ele agerê. Comeu um pedaço e parecia querer mais. Me ofereceu um pedaço. Eu disse que só aceitava se pudesse lavar os utensílios que usaria. Ele pegou o prato de que estava prestes a comer e me deu. Comi e achei gostoso, pena que a temperatura ambiente estava muito baixa, e o agerê, apesar de delicioso, estava gelado. Comi tudo e lavei meu prato e meu garfo. Não sem que Iá Sofia olhasse esse gesto com algum estranhamento.
Logo depois que Iá Formosa levou o amalá, disposto sobre uma pasta branca e doze quiabos cozidos e inteiros, em uma gamela para o quarto de Xangô, Iá Sofia começou a abrir e a espalhar pelo chão três esteiras.
Iá Formosa assentou-se à porta do quarto de Xangô, todos nós os seus filhos e abiãs nos curvamos sobre as esteiras com a testa encostando nelas ou sobre as mãos, e ela começou com a reza em forma de cântico, cujo ritmo era acompanhado pelas batidas de nossas palmas.
Depois de terminada a reza, Iá Sofia entrou no quarto de Xangô e pôs-se a distribuir a partir de uma colher de pau um punhado de amalá sobre a palma da mão de cada um de nós.
Estava uma delícia. Iá Sofia voltou para a cozinha e serviu um prato de comida para Iá Formosa, que me chamou com as anotações de que eu precisava para continuar no Culto aos Orixás em seu ilê.
Saí de lá de alma lavada. Achei o ritual muito interessante, e o amalá de Xangô estava estupendo. Quarta-feira próxima pretendo estar de volta. Laroiê, Exu! Ore Ye Ye Ô, Oxum! Odociaba, Iemanjá! Ri Ro, Euá! Sábado, 18/06/2022 — 18h26 — 18ºC.
In: CASTRO, João Rosa de. Memórias de um Abiã. 1ª edição. São Paulo: Clube de Autores, 2023. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/memorias-de-um-abia>
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