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Memórias de um Abiã: o moral da filha de Obá

  • Foto do escritor: João Rosa de Castro
    João Rosa de Castro
  • 12 de ago.
  • 4 min de leitura
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Hoje venho de ter participado do mesmo ritual a Xangô, a entrega de amalá, que acontecera semana passada. Porém, com algumas diferenças: tomei contato com mais gente.

Como eu fosse de preto, Iá Sofia, logo na entrada, me dissuadiu de tomar amalá assim; Alexandre, que eu tinha conhecido só de vista do primeiro amalá, hoje chegou a me emprestar uma camiseta branca do Ilê.

Confundi a filha de Obá, que estava preparando o amalá, com Iá Formosa; o marido da filha de Obá chegou depois e foi logo acudir a pequena Sabrina do alto da escada, de onde ela chorava pela mãe e ficou contente quando viu o pai. Sabrina, com cerca de três aninhos ou menos, tinha passado por mim e me estranhara; seu pai é um professor, de nome Divino.

Conheci também Nícolas, um rapaz sereno-jovial que agia com perspicácia e falava pouco; Adélia e Rosália, as mesmas filhas (irmãs) de Iá Formosa da semana anterior, hoje estavam unidas e sentadas pelo sofá, a observar os movimentos. Rosália me ofereceu café. Eu aceitei e, depois de bebê-lo, me pus à porta da cozinha para poder fumar e lançar as cinzas no mesmo alguidar.

De repente, vindo da escada, entrou Iá Sofia e levou um susto. Disse que uma pessoa fumando de preto na porta era de assustar.

Enquanto isto, eu esperava Alexandre com a camiseta para eu ficar menos assustador. Mas parece um sinal de luto: ganhei três camisas pretas nos últimos dois anos. Deve ser o luto por minha mãe que não acaba nunca. Logo que Alexandre trouxe a camiseta branca, eu fui ao banheiro e coloquei-a por cima da preta. Quando eu saía do banheiro, avistei Iá Formosa sorridente indo para a cozinha, e dei-lhe um abraço. Segundo os preceitos da casa, neste tipo de  ocasião, eu deveria me abaixar e encostar a cabeça ao chão para saudar a Ialorixá. Mas algo me alertou para não fazê-lo, e eu lhe dei apenas um abraço. Inda disse: — Iá , peço desculpas porque eu vim de preto, e o Alexandre precisou me emprestar esta camiseta branca. Eu tenho uma camiseta branca, com a imagem de Xangô, que está de molho e eu ainda vou bater. Iá Formosa furtou-se à minha justificativa desnecessária. Afinal, nunca é bom se justificar: o amigo não carece, e o inimigo não acredita.

Semana passada, eu fiz um esforço e contribuí com o ilê, como pretendo fazer todo mês. Iá Formosa disse: “Axé. Até quarta-feira.”.

Mas as esteiras foram poucas hoje. Nícolas teve de levar mais duas para o rito. Fiquei ao lado de Gisele, e acompanhei as palmas através das dela. Divino ficou fora da esteira à minha esquerda espaventando a pequena filha, Sabrina, que falava enquanto Iá Formosa rezava.

Hoje, ela estava mais contente. Naturalmente, depois que todos já tinham saboreado com Xangô do amalá, ela formou uma roda, entre filhos sentados no sofá, no banco e no chão, os quais ouviam os causos cômicos ocorridos no ilê. Falamos das plantas da entrada; ela e Gisele combinavam com que roupa esta participaria da festa de Xangô, Iansã e Obá. Iá Formosa combinou com Nícolas, e conosco indiretamente, que a função iniciaria dia catorze de julho.

Os filhos falavam sobre seus próprios orixás, e eu permaneci em silêncio, pois sinto em mim a presença de Oxóssi, o que saiu nas caídas de minha amarração de ibos. Mas não sei ao certo se tenho as características desse orixá. Diz-se que seus filhos são magros e altos. Não é mais o meu caso desde 1997, quando passei a engordar, e recentemente observei minha altura em um e sessenta e nove. Era de um e setenta e um. De qualquer modo, não creio que me iniciarei no Culto aos Orixás, a menos que seja imprescindível a mim, à Iá Formosa e ao Ilê, ocasião em que ela confirmará meus ibos que me dizem ser filho de Oxóssi e Oxum, ou olhará outros protetores espirituais em mim, nos búzios.

Não digo que tanto faz. Todos os dias da semana eu louvo determinados orixás e faço questão de não me esquecer de saudar nenhum deles de domingo a domingo. Quando chega quinta-feira, dia em que nasci e dia de Oxóssi, sinto algo mais transcendental ao dizer Laroiê, Exu, Okê Arô, Oxóssi, etc. Assim como fico mais próximo do feminino no sábado, dedicado à minha suposta mãe Oxum.

Recebi um axogum, recentemente, que me perguntou enquanto ele olhava os búzios: “o que você tem com Oxum, que aparece tanto aqui no atê?”. Eu respondi de imediato: “Oxum é minha protetora espiritual”. Minha simpatia imediata por Iá Formosa de Oxum está aí, e não me deixa mentir. De modo que, por outro lado, pode-se confirmar que sou filho de quaisquer outros orixás, ainda que eu tenha em conta esses dois (Oxóssi e Oxum) como os meus mais reverenciados.

Por fim, depois de tomar do amalá, eu logo tirei a camiseta branca e devolvi a Alexandre. Permaneci na roda de conversa por algum tempo. Descobri que o professor Divino não guardava por mais de quinze dias os presentes que ganhava dos seus numerosos alunos. Quando Iá Formosa, porém, nos disse que não gostava de guardar papel, eu lhe perguntei se ela usava computador. Ela disse que usava, sim. Eu disse que estava pensando em lhe entregar cinco capítulos por vez deste livro; mas com aquela informação, decidi entregar por meios eletrônicos para poupá-la dos papéis.

Adalberto contou a história do pato que ele transportou dentro dum ônibus, e nos causou muitos risos com suas caras e bocas e gestos rápidos para nos fazer imaginar a cena do pato gritando na hora em que ele foi descer.

As vestes dos orixás que Iá Sofia levou do quarto de ojás, sobre cujas cores e modelos Iá Formosa comentava com Gisele, eram de muito boa confecção e muito lindamente coloridas. Dizia Iá Formosa que até o número de listras intercaladas com o tecido da veste atendia aos anos de obrigação que a filha tinha concluído, etc.

Fiquei curioso com algo que ocorria sempre que alguns passavam pelo hall: a maioria dos filhos de Iá Formosa se abaixavam quando passavam diante de uma das portas. Não tive oportunidade de perguntar ainda de que se tratava aquele gesto e pretendo descobrir numa das próximas vezes em que eu estiver lá. Laroiê, Exu! Xeuepa, Baba, Obatalá! Exeuê, Oxaguiã! Epá Oju, Olorum, Orunmilá! Sexta-feira, 24/06/2022 — 20h42 — 21ºC.


In: CASTRO, João Rosa de. Memórias de um Abiã. 1ª Edição. São Paulo: Clube de Autores, 2023. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/memorias-de-um-abia>

 
 
 

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