Oficina de Ficção: tipos e caracteres
- João Rosa de Castro
- há 4 dias
- 2 min de leitura

Fazia um mês que Vitória e Gustavo lidavam juntos com uma pequena parte da vida. Ele ficava no terceiro e ela permanecia no quinto andar. Ela marcava o ponto no terceiro; não tinha como evitá-lo, na hora da saída. Daniele entrara no escritório e brincara com Ceiça, que estivera ausente. Gustavo repunha a água em sua garrafa plástica vazia, como fazia todas as tardes, pouco antes das seis. Vitória estava desconcertada com o que ocorrera. Não podia esconder seu descontentamento. Todos saíram e seguiram para a área dos elevadores. Só Daniela parecia à vontade. O projeto de casal em crise parecia não saber nem o básico, que seria estar em pé, muito menos em que direção andavam lentos ou olhavam entorpecidos pela ira, temendo que os olhares se cruzassem. Quando abriu a porta do elevador da direita, Gustavo notou que estava semilotado e, ao ouvir o sinal de abertura do de serviço, da esquerda, fez menção de entrar nele. Vitória sentia um misto de ódio, amor e compaixão. Ficou com o braço atravessando o sensor para manter a porta aberta e murmurou que Gustavo fosse logo e entrasse. Ele entrou acabrunhado com a gentileza de Vitória. Daniela quis ler o que estava escrito sobre o brasão azul em letras miúdas no button sobre a mochila surrada de Gustavo. “Rio de Janeiro?”, disse irônica Daniela, “vê se eu tenho cara de turista!”. “Vê se eu tenho cara de carioca!”, respondeu Gustavo com desdém. As mulheres desconhecidas, cujo rosto não dizia nada, reprovavam em segredo que os dois conversassem em pleno elevador em movimento. Não havia nada mais tosco. Mas eles não estavam preocupados com isso. Daniela estava feliz porque era sexta-feira e ela estava indo para a casa dos pais, no interior. Gustavo também, ainda que a presença de Vitória o induzia ao seu caos. E ela própria só pensava uma coisa: ser a última a sair do elevador. Todos foram saindo, quando o elevador chegou ao térreo. Apenas Vitória, bancando a “cavalheira”, mais uma vez retendo o sensor, e Gustavo ao fundo, permaneciam confusos. “Pode descer”, disse ela com frieza e simpatia. “Desce você, Vitória”, retrucou Gustavo com voz baixíssima, mas calorosamente. “Desce você.”, desafiou ela mais uma vez. Gustavo falou, agora com a voz de quem comandava: “Por favor, Vitória!”, e fez todo o gesto de que ele é que seria o cavalheiro até morrer. Vitória rendeu-se, fez um clique com a língua, bateu o sapato marrom e sem salto no mármore do assoalho e foi andando em direção ao bloqueio de saída. Gustavo sentiu-se duplamente vitorioso. Vencera a própria Vitória e como um rato se contentava com migalhas de amor. Gozava da satisfação de ter sido muito mais disputado do que ela, na mesa do almoço, entre os colegas. Sabia que ela sabia que ele sabia disso, o que lhe dava um poderio sobrenatural e ele se sentiria um deus no fim de semana. Foi assim.
In: CASTRO, João Rosa de. Oficina de Ficção. 2ª Edição. São Paulo: Clube de Autores, 2019. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/oficina-de-ficcao >
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