Santa Maria d'Oeste: amigos de papel
- João Rosa de Castro
- 3 de jun.
- 4 min de leitura

Pois bem, Maria Santa. Parece que está tudo bem entre nós. No último encontro chegamos a nos elogiar mutuamente. Eu os seus cabelos avermelhados e você o meu recém florescido ânimo. Eu sou transparente e há dois dias eu estava mesmo esperançoso ainda, com a perspectiva de que as escolas iam me chamar para começar uma fase nova em minha vida. No entanto, hoje já é quinta-feira e nada de me telefonarem. Certamente há outros candidatos sendo avaliados friamente por meio de critérios cretinos. Não vejo outro predicado para o substantivo “critério” quando se trata de processo seletivo.
Agora há pouco, surgiu em mim uma vontade de comer alguma coisa que eu não sabia o que era. A vontade enigmática era também a de escrever um poema, mas eu não quis escrever ainda. Não tenho nada de novo para escrever em poesia, já escrevera algo ontem mesmo. Resolvi ler um pedaço de Nietzsche e deparei com ele debochando da nossa incapacidade de esperar. Dizia que “esperar era para os escritores uma tragédia”. Segundo ele, eles não sabem adiar a própria obra para dois ou três anos. Que se dirá da minha que já espera mais de quinze anos sem nenhum eco convincente!
Você sabe que esse livrinho me serve, entre outros propósitos, para dizer a você as coisas importantes da minha vida que não cabe dizer na sessão de terapia; uma vez que a realidade é tão excessiva. Assim, esqueci de comentar na sessão passada que, uma vez que tenho poucos amigos, a minha vida é movida e motivada pelos livros que leio. Ficara uns quinze dias sem me permitir nem mesmo um momento sensual, porque tinha sido sabatinado pela Doutrina de Buda, tão contrária à entrega humana às paixões mundanas. Cismei que minha “pior” paixão era o sexo casual. Desses que a gente beija e esquece, sabe? Talvez Buda nem mesmo reprove isso, mas toda vez que eu lia na doutrina, a expressão “paixões mundanas”, eu imaginava a avidez com que me entrego no sexo. Todas as manhãs eu orava aqueles mantras cujo significado nem me passava pela cabeça. É que fiquei impressionado com as fábulas e as parábolas do budismo.
Por sorte, simultaneamente à Doutrina, eu estava lendo Assim Falou Zaratustra, e, refreando esses meus devaneios orientais, Zaratustra lembrou que de nada adianta aspirar à iluminação ou à castidade quando sabemos que nossos pais eram libertinos e se dilatavam e refestelavam comendo javali. Eu ri com essa fala dele. Porque meu pai só comia, e em abundância, carne de porco, sarapatel, chouriço, feijoada, etc., tudo muito apimentado; e Chiquinha, não obstante seus mais de oitenta anos, não descola da televisão. Adora assistir todas as novelas e vê até mesmo Malhação, diariamente. Pensando nisto, passei a considerar um grande contrassenso eu ficar lá sonhando com as vestes de monge e o olhar concentrado daquela gente que nasceu para viver mesmo assim. Eu não! Senti que em relação aos meus pais eu estava era perdendo meu tempo. Tinha mais é que partir para as baladas e seguir essa “tradiçãozinha” solta, de prazeres e diversão, iniciada por eles. Foi mesmo muito libertadora essa visão. Pareceu-me uma nova manhã com toda sua promessa de bem-aventurança.
Sentindo esse mesmo surto de liberdade moral, tive coragem de iniciar de vez a leitura de Erasmo. Como eu podia ter me esquecido? O Elogio da Loucura dormira comigo havia mais de três meses, na cabeceira da cama e eu não tinha tido coragem de ler! Pode, Maria, Santa Maria? Esta leitura, que você disse ter feito também, libertou-me de muitos demônios. Porém, me senti mais à vontade quando a Loucura disse ser um de seus seguidores Morfeu e outra a Volúpia. Finalmente minhas noites mal (ou não) dormidas ganharam um significado novo. Como eu havia me culpado por não dormir direito como todo cidadão! E incomodado as Mães de Santo com essa ladainha de que eu não sabia dormir! Como eu tinha tomado banhos e acendido velas para os orixás! Agora não! A Loucura me fez de mim um de seus mortais mais assíduos. O meu não dormir à noite e, portanto, dormir demais de dia, o meu infernizar os grupos, o meu isolar-me de repente, como que querendo disfarçar a própria loucura, o meu versejar, o meu escrever o que me dá na telha. Tudo quanto eu mais odiava em mim recebe, nesta obra, o mais exaltado elogio. Como é bom saber que posso ser disputado nas rodas de conversas. Que bom saber que as mulheres, sendo as seguidoras mais fiéis da Loucura, têm preferência pela minha companhia. Que prazer poder admitir que tudo isso de me formar, de querer concluir o mestrado, de andar com livros por toda parte e de filosofar não passa de um disfarce para a minha enorme LOUCURA! Que honra me sentir admitido por Erasmo de Roterdã, enfim.
O mesmo Erasmo que Nietzsche também exalta em Humano, Demasiado Humano (minha mais recente leitura), ao lado de Petrarca e Voltaire, que tanto ele admira. Por fim, esse livro está amenizando uma guerra dialética na minha mente entre os dois opostos, ou melhor, dois que eu considerava opostos: A saúde e a loucura. Mas, por outro lado, sei que não precisa haver dilema entre a saúde e a loucura. No meu caso, como a loucura é um fato, uso a saúde como um disfarce, uma máscara que me permita ao menos me dirigir a algum outro ser. O pior deveria ser o contrário: isto é, se, sendo muito sensato, precisasse me passar por louco para poder dizer o que penso.
Mas, vamos ver no que dá a leitura de Humano; estou apenas começando. Tenho o plano de esperar que as escolas me chamem para lecionar até daqui a dez dias; caso contrário, vou começar a traduzir Clarice Lispector. Uma idiossincrasia nova é verter para inglês todas as poucas grandes mulheres escritoras brasileiras, e pretendo começar por Clarice. Vamos ver se vão dar aulinhas de inglês ou grandes viagens pela alma do eterno feminino. Esperemos, pois!
In: CASTRO, João Rosa de. Santa Maria d’Oeste. 1 ed. São Paulo: autopublicação. 2018. Disponível em <http://pedradetoque.com >.
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