Superego Cultura: luz de freio
- João Rosa de Castro
- 5 de ago.
- 3 min de leitura

Para quem escrevo? Que calhordice a minha! Poderia ter feito esta pergunta no começo destas escritas. Mas realmente é difícil respondê-la e por isso fica difícil perguntá-la também na mesma proporção. O que não posso fazer agora é transferir este texto para o início. Isto nunca dá certo; pois os olhos estão acima do nariz assim como a boca está abaixo dele. Fica, portanto, como mais uma das minhas palinódias; afinal, para mim, escrever é um eterno pedido de desculpas.
De maneira que não escrevo para ninguém em especial. Apenas em benefício de alguns que sempre quererei salvar do naufrágio que parece a vida. Minha escrita é como a sabedoria do cego Tirésias; o valor que teria uma mão estendida a si mesmo. Breve, porém, chega a hora em que não escrevo mais, justamente porque o vigor destes dias terá se exaurido. Escrevo para os não-burgueses, porque me vejo como parte da burguesia e só escolho nela o que há de força, que é muito escassa para se tornar união de palavras e de conceitos; daí minha brutalidade incidental e repentina – a criança é passagem, o velho é passagem; mas o burguês sempre fica mais tempo ora admirando ora cobiçando esse prazer que é passar; não me apetece esse tempo – excluo-me antes de ser excluído – não pretendo dar a essa gente o gosto que seria me por para fora da arena.
Por isso, quando se esvair a minha burguesidade, quem sabe encontre gente como eu: ao mesmo tempo ostentando uma infância tardia ou uma velhice precipitada. Os burgueses não me entenderiam; mas os vividos me traduzirão em políticas, em arte, em ciência, em filosofia para as crianças – cada verso meu se converterá em uma porção de histórias infantis – os burgueses não me leriam, pois não busco “sucesso ou fama” pela obra da minha poesia, e isto não é caridade nenhuma. Mas os burgueses são tão medrosos da felicidade, da miséria, que encontraram uma posição aquém de mesquinhos. Há muito sinal de fraqueza, apesar da massa muscular.
Escrevo, pois, para os futuros Monteiros Lobatos, para as futuras Clarices Lispectors, para as futuras Elianas não se esquecerem, como não se esquecem os verdadeiros palhaços, de nunca terem nenhuma certeza diante de uma criança. Escrevo para as futuras Lygias, para os futuros Nietzsches, para os futuros psicólogos, para os futuros reumatologistas, para os futuros geriatras e todos os outros que acreditam numa velhice digna como aqueles reais sertanejos, guardiões da sabedoria popular.
Deixo, porém, para a minha velhice de fato a miséria, a fraqueza, a dor e a solidão imposta – mas até lá vão ter de me engolir mais com o peito cheio e em carne e osso do que falando-papagaiando ou escrevendo qualquer coisa. A palavra da minha pena segue o mesmo rumo do meu ímpeto de guardar os não-burgueses para si mesmos contra nós, para longe de nós, os burgueses no tempo.
De modo que são só obviedades, que, porém, não se podem esquecer. Os burgueses não me leem porque precisam de tempo para atualizar o iPhone, para ir buscar o carro no mecânico, o que demora mais por conta da pechincha, porque precisam ir ao shopping; e, em trânsito, precisam ler as luzes de freio como sua melhor literatura e, quando andam menos, aproveitam para decifrar alguma filosofia recôndita nas placas dos carros da frente; quando no ônibus ou no metrô, ou está lotado ou estão dormindo ou assistindo filmes medíocres em telinhas de celular. E quem é que não sendo burguês perderia tempo com coisas desse tipo? Também não me leem por inveja, assim como não leio Shakespeare. Somos compreensíveis, somos simples, somos previsíveis. Evoé!
In: CASTRO, João Rosa de. Superego Cultural. 1a Edição. São Paulo: Clube de Autores, 2025. Disponível em <https://clubedeautores.com.br/livro/superego-cultural-2>.





