top of page

Superego Cultural: os hamsters de Quixeramobim - Parte 1

  • Foto do escritor: João Rosa de Castro
    João Rosa de Castro
  • 18 de mar.
  • 3 min de leitura

Pelo modo como meu pai tratava os sacerdotes, posso imaginar que este único livro dele acessível para mim, as Sagradas Escrituras Judaico-Cristãs, representa mais um compromisso do que uma confissão. Talvez tenha observado como fomos pobres em lermos as coisas mais profanas — sabia que elas nos davam sentimento de culpa, ao passo que as Escrituras nos aliviariam, nos fariam pertencer a alguma grei. Meu pai era macumbeiro; não creio que persuadisse seus filhos para nenhum paraíso, onde não o pudéssemos encontrar depois da passagem — se é que há algum encontro depois dela. Desconfio, pois, que sua intenção era a de que buscássemos argumentos para negar e condenar esse texto mais do que, temendo o reino do inferno, amarelássemos diante dele com preguiça ou “medo” de enfrentá-lo ou confrontá-lo.

Entretanto, logo no começo, me intriga como os números cabalísticos das gerações até o nascimento de José denotam uma família distinta, que foi interrompida e/ou desmanchada por um cidadão chamado “Espírito Santo”: isto, há mais de dois milênios, este era o nome do amante. Mas não era esperado que José acreditasse numa traição. Aliás, ele nem se sentiu traído — afinal, estavam só ficando. Ela só estava tencionando o casamento — nem mesmo noivos estavam. Ele era um artífice, um sonhador, talvez deveras apaixonado pela virgem. E quem é que não se encantaria por uma? Vai saber como estava o sexo na época! Viam o sexo como um alívio do estresse vivido desde o último orgasmo.

Mas os sonhos comprometem até hoje. Já sabiam muito bem que engravidar era empreitada de sexos opostos. Mesmo que um E.T., da UNIFESP ou de Harvard, por exemplo, tivesse aparecido por lá para fazer inseminação artificial, o pai teria outro nome que “Espírito Santo”. Mesmo que tivesse escolhido o componente masculino a dedo, esse E.T. jamais poderia dizer que o cara era santo — todo DNA pode apresentar ou descrever doenças, sejam elas reais, potenciais ou prováveis. De modo que não existe ninguém santo.

Por conta de um sonho, José foi vítima de traição? Contrariando assim todas as gerações anteriores desde Abraão? E ao se permitir trair, traiu também a natureza e a natureza humana. E será tido como desonesto até que a ciência prove que uma mulher possa engravidar de qualquer “espírito” ou outra abstração ou espectro ou o quer que não seja um homem, que possamos “apalpar”. Sonhar que nasceria à minha suposta mulher um “deus” não justificaria minha apatia em relação a ela como “uma propriedade afetiva ou intelectual” e, portanto, não me isentaria do sentimento e da atitude (para não dizer indignação) de homem traído. De tal sorte que a bela virgem será sempre vista, ao menos por mim e meus filhos, ainda que soberana, como cúmplice (ou vítima) de traição quer contra o então esposo, quer contra a humanidade ou a natureza. Em razão de um sonho, o carpinteiro foi dissuadido de agir com “sua justiça”, a saber — divorciar-se secreta ou publicamente. Talvez assim, o mundo tivesse mais saúde, menos miséria, e Maria não fosse esse espetáculo público na boca de padres e pastores dissaboridos. Teria sido uma bela e distinta mãe-solteira, seu filho bastardo (bastardo ou não) teria crescido, trabalhado como gente normal, dado a ela netos, e nós nem teríamos vindo da África, Ásia, Europa, alhures desmanchar os prazeres dessas tribos daqui.

Esta pequena e até mesmo mesquinha reflexão é apenas uma das pontas de um dos incontáveis icebergs cristãos. Apenas o resultado da leitura do primeiro capítulo do primeiro livro do “novo testamento”; esse atrevimento contra a história, que meu pai deixou, e que “tenta tornar abstrato” um livro de guerreiros reais (e às vezes também sobrenaturais). Míseros restos! Evoé!

07/06/2011

 

In: CASTRO, João Rosa de. Superego Cultural. São Paulo: Autopublicação, 2017. Disponível em <www.pedradetoque.com>.

 
 
 

Comments


©2018 by Pedra de Toque. Proudly created with Wix.com

bottom of page